Era época de Natal quando eu parti sozinha para a Amazônia para ficar uma semana imersa em uma comunidade a 70 km de Manaus, sem a minha filha de 15 anos. Essa foi a minha segunda experiência sem ela – quando Manu tinha 9 anos, fui para a Chapada dos Veadeiros, uma viagem que durou dez dias. Ambas as experiências me possibilitaram conexões com a minha essência e com a minha individualidade.
Assim como eu, outras mães buscam na natureza um refúgio de autoconhecimento, de superação de desafios, realização de sonhos e lazer. Mas por trás dessa oportunidade, nos deparamos com questionamentos como: “com quem você deixou os seus filhos?”,”vai ficar esse tempo todo longe deles?” – que nos fazem carregar uma espécie de culpa materna. Um peso muitas vezes imposto pela sociedade que enxerga que não podemos nos ausentar do papel da maternidade para vivenciar experiências exclusivamente para nós.
Laila Mantra, que começou a praticar atividades na natureza aos 30 anos, quando seus filhos, Breno e Cadu, tinham 6 e 5 anos de idade, conhece bem esse sentimento. “Muitas pessoas não entendem o que sentimos quando estamos na natureza, e me questionavam como eu conseguia abandonar os meus filhos. Algumas me chamavam de corajosa, mas eu sentia um julgamento por trás dessa aparente admiração.”
A primeira experiência de Laila sem os dois filhos foi no Caminho de Santiago de Compostela. Na época, ela estava casada, em um relacionamento abusivo, e em depressão profunda. Comprou uma mochila em dezembro e, em maio, partiu para uma jornada de 34 dias sozinha.
Laila no Caminho de Santiago
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Laila conta que carregou o sentimento de culpa por ter feito essa jornada sozinha por muitos anos – só conseguiu superar em uma viagem de 45 dias para a África, com o objetivo de chegar ao cume do Kilimanjaro. Na partida, Cadu, seu filho mais novo, lhe entregou uma série de bilhetes enrolados. Cada um trazia um número, correspondente ao seu dia de expedição.
“Ele me pediu para abrir na ordem certa. Me emociono ao lembrar das mensagens diárias de apoio. No dia do cume, o bilhete dizia que apesar de não saberem se eu tinha chegado lá, ele e o irmão se orgulhavam da minha jornada e da mulher que me tornei. Nesse dia, eu entendi que o que importava era o orgulho que eles sentiam de mim, e não os julgamentos.”
A admiração foi tão grande que hoje o filho mais novo de Laila trabalha com ela na agência de turismo que montou anos depois do Caminho de Santiago, a Mantra. “Se não vamos atrás do que faz o nosso coração vibrar, como podemos inspirar as pessoas que mais amamos, que são os nossos filhos, a fazerem o mesmo?”
É na natureza que Laila encontra forças para fazer o que é necessário enquanto está presente na companhia deles. “A conexão com a montanha, a sensação de liberdade, e principalmente a certeza que tenho de inspirar e levar outras mulheres para fazer isso é o que transforma a minha vida – e a delas. É importante para a minha saúde mental sair de uma cidade como São Paulo para me conectar profundamente com a natureza.”
‘Mães felizes criam filhos felizes’
Durante a sua infância, Leticia Mantovani acampava com os pais e frequentava o sítio da avó. A vivência na natureza permaneceu em sua vida durante a adolescência e a fase adulta.
A chefe de cozinha, designer digital e mãe da Alice, de 13 anos, passou a fazer trilhas sozinha quando a menina tinha por volta dos 6 anos de idade. “No começo, eu sentia não só o peso na consciência enquanto mãe, mas o peso que a sociedade me colocava. Mas acredito que mães felizes criam filhos felizes. Fazer trilhas é o que me faz conectar comigo e com a natureza”, conta Leticia, que também faz cicloviagens.
Apesar de levar Alice para algumas trilhas, a mãe reserva destinos para ir sozinha – o que a filha entende bem devido a boa comunicação entre ambas. No início, Leticia, que já era divorciada, contava com o apoio do ex-marido, que sempre a incentivou. Após seu falecimento, passou a contar com o apoio da mãe. “Tive de fazê-la entender que esse é o meu jeito de levar a vida, já que ela é de outra geração.”
Letícia
Entre as atividades solo de Leticia na natureza estão quase todas as trilhas de Itatiaia, Trilha do Ouro, Serra da Canastra, Travessia Lapinha Tabuleiro, entre outras. “Faz três anos que tomei coragem para fazer algumas maiores, como o Monte Roraima, em que fiquei uma semana sem contato com a Alice. No começo, eu fiquei preocupada, mas depois entendi que era o meu momento e que ela estava bem amparada com a minha mãe.”
Apesar de já ter a visão de que estar sozinha na natureza era importante para ela, após o ex-marido ser diagnosticado com câncer e o falecimento da sua avó, Leticia começou a valorizar ainda mais as atividades que trazem bem-estar para ela. “Quando a gente deixa para depois, acaba não vivendo o que deseja. O contato com a natureza sempre foi a minha vida, e costumo dizer que é a minha religião.”
As experiências na natureza de Leticia beneficiam não somente a ela, mas a Alice também. “Volto para ela mais feliz e me conhecendo melhor. Os benefícios são mais psicológicos do que físicos.”
‘A nossa vida não é só a maternidade’
Para Renata Kuntz, pediatra e mãe do Heitor, de 12 anos, e da Celina, de 3 anos, viajar sem os filhos é uma forma de pausar o estresse do dia a dia e uma oportunidade de expansão de conhecimento.
“A conexão com outras pessoas, lugares e culturas, que muitas vezes não tenho acesso quando estou com eles, traz um crescimento pessoal muito grande. Temos a oportunidade de entrar em contato com novos costumes, histórias e comunidades. Isso me toca e me estimula.”
Renata costuma vivenciar experiências na natureza com os filhos – o Heitor já esteve com ela no Monte Roraima e na Chapada dos Veadeiros –, mas uma vez ao ano, ela viaja sozinha. Sua primeira experiência independente foi em Salkantay, no Peru, em 2019. “Ali, começou a minha trajetória pós maternidade e entendi que era possível fazer sem eles. Foi emblemático e marcante. Mesmo estando longe, eu sabia que poderia trazer algo positivo para ele.”
Renata
De lá para cá, Renata realizou o Circuito W Torres del Paine, na Patagônia Chilena, esteve em Mendoza, fez a Travessia Petrópolis-Teresópolis, expedições no Chile, e se prepara para passar 13 dias em Chamonix, na França. “A nossa vida não é só maternidade e trabalho. É importante estarmos bem para cuidar dos filhos e transmitir coisas boas. Volto sempre mais forte das experiências na natureza. É um momento de conexão e de reavivar o que está dentro de mim.”
No caso de Renata, os pais ajudam a cuidar dos filhos. “Eu moro no Paraná e eles no Rio. Mas conseguem vir para cá para ficar com os meninos enquanto estou fora. Também tenho ajuda de cuidadoras, que estão ao meu lado no dia a dia por conta da minha rotina pesada de trabalho.”
Como pediatra, Renata reforça, ainda, que a infância precisa da natureza, e deixa uma reflexão: “Como podemos oferecer essa experiência para os nossos filhos se não a vivenciamos? Temos que estar seguras para que eles também possam experimentar no futuro. Com uma boa forma de comunicação, conseguimos fazê-los compreender que dentro de alguns dias nós voltaremos com novas histórias para contar.”
‘Por que eu deveria abrir mão do meu sonho?’
Assim como Renata, Fernanda May sempre levou a filha, Maitê, hoje com 18 anos, desde cedo para trilhas e outras imersões na natureza, porém, não desistiu de seguir os seus sonhos em direção aos cumes de altas montanhas. “Cada mulher e mãe tem o seu desafio mental, e o meu é ir para a alta montanha.”
Antes de se formar como médica e se tornar mãe, Fernanda já era montanhista. A interrupção temporária das atividades ocorreu durante a residência, mas quando Maitê nasceu, a natureza chamou Fernanda de volta. “Com seis meses, comecei a fazer trilhas com ela nas costas, em mochilas especiais para bebês. Com dez meses, ela subiu o pico das Agulhas Negras comigo e não paramos mais. Ela fez eu voltar para a natureza rapidamente e foi minha parceira durante muitos anos. Fizemos milhares de travessias pelo Brasil.”
Em 2015, Fernanda começou a praticar alta montanha. Maitê tinha 7 anos. Por ser uma atividade de alto risco, a médica partiu para essa jornada sozinha, em direção ao Kilimanjaro e outros destinos. “No início, ela achou o máximo e fazia brindes para eu levar. Pedia para eu tirar fotos no cume, com livrinho, desenho e outras coisas que ela fazia para mim. Mas quando fiz o Aconcágua, ela já estava na adolescência, e começou a ficar apreensiva. Com o passar do tempo, amenizou”, conta Fernanda, que já esteve na Bolívia, Peru, Nepal, Alasca, Rússia, Argentina, França, entre outros destinos de alta montanha.
Fernanda relembra que quando recebeu uma proposta tentadora para estar no Denali, a montanha mais alta da América do Norte, a filha foi resistente porque viajaria no mês seguinte para um intercâmbio fora do Brasil. “Chamei a Maitê para conversar e disse para ela: ‘Você sabe que o Denali é um grande sonho para mim, assim como o intercâmbio é o seu. Por que você acha que tenho que abrir mão dessa oportunidade, se você está indo viver o seu sonho?’ Falei, ainda, que dedicaria o cume a ela. Chegando lá, fiz um vídeo que viralizou na internet. Precisamos lutar pelos nossos sonhos.”
Fernanda no cume do Denali
Fernanda é uma inspiração para mães e mulheres montanhistas, mas fora desse ambiente, ela enfrenta bastante preconceito. “Sempre ouvi que eu era louca por me expor ao risco sendo mãe e por passar longos períodos distante da minha filha.”
O que essas pessoas não sabem é que ao se tornar mãe, Fernanda passou a ser uma mulher muito mais forte e mais cuidadosa consigo. “Fiquei muito mais preocupada em fazer as coisas da forma mais segura possível, sempre bem preparada para minimizar os riscos. A vontade de voltar para a casa, de estar ali para a minha filha, me torna uma leoa.”
Durante 9 anos, Fernanda contou com o apoio da Rita, que ajudou na criação de Maitê. “Como médica, eu tinha hora para sair, mas não tinha hora para voltar. O pai da Maitê era ausente e a Rita ficava com ela quando eu viajava. Minha homenagem vai para ela que, aliás, sempre ganhava os melhores presentes do mundo inteiro quando eu retornava – o que acho pouco pelo que ela fazia por mim!”
Sozinhas na natureza, elas seguem os próprios roteiros
Ruri Giannini é engenheira e mãe dos gêmeos Ruth e Isaac, atualmente com 14 anos. Começou a fazer trilhas no início da faculdade e nunca mais parou. Ao longo dos anos, passou a investir em equipamentos e a se preparar melhor.
Desde os 2 anos dos filhos, Ruri mantém o costume de viajar sozinha, principalmente nas suas férias, além de se planejar para a temporada de alta montanha. “Sozinha, consigo fazer uma viagem maior. Tem lugares que não tem como levá-los, inclusive por questões financeiras. Além disso, eu preciso desse tempo para descansar. Quando estamos com os filhos, pensamos o tempo todo neles, na alimentação e nas atividades da escola.”
Ruri
Enquanto ela parte para a natureza, os filhos também se aventuram em um acampamento que frequentam há anos durante as férias. Além disso, eles fazem algumas travessias com a mãe. “Sempre fizemos trilhas juntos e essa é uma opção, mas a energia é outra. Muitas vezes, quero cuidar somente de mim, sem ter rotina. Recentemente, na Patagônia, eu saí às 4h da manhã para fazer uma trilha e ver o nascer do sol. É um tempo que tenho só para mim, sem ter que gerenciá-los”, conta Ruri, que já esteve em diversas montanhas no Brasil e no exterior.
Para a advogada Carla Milioni, que faz parte da diretoria jurídica da FEEMERJ (Federação de Esportes de Montanha do Estado do Rio de Janeiro), poder seguir o seu próprio tempo é libertador. “Com as crianças o ritmo é outro, optamos por fazer distâncias mais curtas e percursos mais fáceis. Quando estou sozinha, me desafio mais e dito o meu próprio ritmo, o que torna a experiência mais prazerosa. É uma terapia. Sinto que me resgato”, conta Carla, que esteve recentemente na região montanhosa da Agulhas Negras, em Itatiaia.
Carla
Mãe da Beatriz, de 5 anos, e da Sofia, de 8 anos, Carla passou a sua infância no interior de São Paulo em conexão com a natureza. Quando já adulta mudou-se para o Rio de Janeiro, entrou para o Clube Excursionista Carioca e começou uma relação de amor com a escalada. Também se casou com um montanhista. Naturalmente, suas filhas foram apresentadas cedo para o universo de trilhas e se tornaram companheiras, mas também aprenderam a passar um tempo longe da mãe.
“Quando a minha filha mais velha tinha um ano, fui para a Espanha com o meu marido e fizemos várias trilhas nos Pirineus durante um mês. Vínhamos de um período muito desgastante, porque ela teve um problema no pulmão aos 4 meses e ficou na UTI. Foi uma fase muito dura. Quando ela se estabilizou e estava bem, eu precisava cuidar de mim. O primeiro ano é muito difícil para toda mãe, mas para mim foi ainda mais puxado.”
Carla conta que ainda amamentava e fez um “esquema de guerra” com a mãe, os sogros e duas babás para dar o apoio necessário durante sua ausência. “Foi um momento libertador para mim. Ao mesmo tempo em que me sentia culpada, me sentia muito feliz! Quando voltei, por um milagre, a minha filha voltou a mamar no peito, o que fez até depois dos dois anos. A viagem não teve nenhum prejuízo para a infância dela. Hoje, eu estimulo as minhas amigas a fazerem o mesmo.”
Acolhimento à nossa individualidade materna
Ser mãe é uma entrega profunda, mas histórias inspiradoras como essas nos lembram que somos mulheres inteiras – com desejos, limites, vontades e sonhos. Independentemente dos motivos que nos levam à natureza sem os filhos, a verdade é uma só: nós precisamos disso. Estar só não é abandono, é presença conosco para, depois, estarmos mais presentes com os nossos filhos. Cultivar a nossa individualidade é, portanto, um ato de carinho e respeito – a nós e a eles.
Te convido a experimentar!
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