Trilhas de exclusão: racismo e desigualdade em atividades na natureza

A montanhista Aretha Duarte ganhou destaque na mídia em 2021 ao se tornar a primeira mulher negra latino-americana a escalar o Monte Everest. Por trás dessa conquista pessoal desafiadora e grandiosa, Aretha tinha um objetivo: ampliar as oportunidades em atividades na natureza tanto para pessoas negras quanto para mulheres.

Criada na periferia de Campinas, Aretha foi a primeira de sua família a cursar o ensino superior, o que para ela representou o rompimento de uma estrutura. Durante a graduação em educação física, curso que escolheu por acreditar no esporte como instrumento de educação, Aretha teve acesso a uma palestra sobre montanhismo.

A guia e atleta tinha 25 anos quando vivenciou uma sensação dúbia diante da descoberta: “Fiquei incomodada porque era a primeira vez que eu ouvia falar sobre montanhismo, mas ao mesmo tempo feliz porque finalmente tinha chegado a oportunidade de ter acesso a um esporte no meio da natureza que me parecia muito interessante. Fiquei empolgada em praticar trekking e expedições.”

Para trilhar esse caminho, Aretha pediu emprego na operadora que ministrou a palestra e entrou para o universo do montanhismo de forma profissional. “Levou um tempo de resiliência para eu ser aceita naquele ambiente. Iniciei como vendedora, mas tinha o desejo de estar em campo. Passei a atuar como assistente de guias no Brasil e fora, e finalmente me tornei guia especializada em alta montanha.”

Basecamp do Everest, 2025. Foto: Gabriel Tarso.

Basecamp do Everest, abril de 2025 – Foto: Gabriel Tarso

Desde então, Aretha segue inspirando de forma ativa outras pessoas. Seu propósito é impactar e transformar vidas por meio da inclusão. “Hoje, eu tenho visibilidade dentro desse nicho, mas não me interessa ser a única.”

Assim como Aretha, Ariel Silva, que coleciona no currículo 8 das 10 maiores montanhas do Brasil, além de feitos na Patagônia Argentina e na Venezuela, não quer ser reconhecido como um ponto fora da curva. Seu desejo é servir de exemplo e inspiração para a comunidade preta. “Não gosto de ser visto como um jovem negro que faz atividades na natureza. Quero ser o Ariel escalador, que faz trilhas e, através disso, mostra para os jovens negros que não têm condições que é possível”, conta Ariel, nascido na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, guia de turismo e fundador da agência Montanha Sagrada.

Ariel Silva, em El Chaltén - Patagônia

Ariel Silva – El Chaltén – Patagônia Argentina

O que impede a inclusão de pessoas pretas em atividades na natureza

Por mais contraditório que possa parecer, em um país como o Brasil, onde a maioria da população é composta por negros e pardos, muitas atividades na natureza, como o montanhismo, ainda são dominadas por homens brancos, sob uma ótica tradicionalista, segundo Carla Romão, montanhista, cientista social e diretora técnica do CERJ (Clube Excursionista Rio de Janeiro – um dos clubes ligados à FEEMERJ).

“O nosso maior desafio dentro dessa perspectiva racial, na minha avaliação, tem sido dividir esse espaço. Se eu estou em um ambiente onde nem metade ou um terço é de pessoas negras, aquele ambiente tem um problema muito sério”, conta Carla.

O acesso ao montanhismo, escalada e trekking é limitado a determinados grupos específicos por questões socioeconômicas e culturais, segundo Aretha Duarte. A sua jornada ao Everest foi um chamado para impulsionar a formação de pontes entre empresas, governos e sociedade civil, para a criação de mais possibilidades inclusivas. “Entendo que é uma responsabilidade de todos – e não somente da pessoa negra. Ela também tem vontade, mas a oportunidade não chega para ela, o que dificulta a prática das atividades.”

Para o sociólogo Denilson Silva, um dos fundadores do Negritude Outdoor, enxergar de forma ampla todas as barreiras que impedem a inclusão de negros, periféricos e mulheres em atividades pautadas no homem hétero branco é fundamental para uma conscientização concreta. “A gente tende a acreditar que resolver uma questão, um galho só, vai dar conta de tudo, e aí você cria uma árvore problemática. É preciso olhar para o todo.”

Barreira socioeconômica: impedimento democrático nas montanhas

Diego Cruz cresceu na cidade de Franco da Rocha, no estado de São Paulo. Na época, era um lugar com bastante áreas verdes e era lá que ele brincava com os amigos. O contato com as atividades outdoor veio por meio de um desejo de mudança de estilo de vida, aos 24 anos. Ao fazer a sua primeira trilha, na Cachoeira da Pedra Furada, em Mogi Mirim, Diego resgatou a conexão com a natureza que vivenciou na infância.

Ali, nascia um sonho: fazer o Pico dos Marins, mas logo Diego se deparou com desafios como investimentos em equipamentos e logística. “Quando eu comecei a pensar na barraca, tênis, comida que teria que levar, pensei em desistir. Mas na época, conheci alguns grupos de trilha e me adaptei à minha realidade. Não tinha saco de dormir, mas improvisei cobertas. Eu queria conseguir”, conta o fundador da agência OKÊ Aventura e vice-presidente da FEMESP (Federação de Montanhismo do Estado de São Paulo).

Ao fazer a Travessia Marins x Itaguaré de forma adaptada, Diego enfrentou uma situação direta de racismo. “Ouvi uma pessoa do grupo comentar que ‘aquilo era coisa de preto’, o que gerou desconforto não só em mim, mas em todos. A situação despertou diversos sentimentos em mim. É muito triste pensar que você não pode fazer as coisas por não poder comprar um saco de dormir de marcas caras.”

Diego Cruz

Diego Cruz

Uma das principais barreiras de inserção da população preta em atividades na natureza é a socioeconômica, já que os equipamentos são caros e muitos locais são de difícil acesso, conforme explica Ariel Silva. “Uma mochila é o preço do aluguel da casa de uma pessoa como eu. Uma corda de escalada representa dois salários. Enquanto as pessoas estão com as melhores mochilas, muitas usam a mesma do trabalho.”

Segundo o guia, esse desafio, naturalmente, separa as pessoas e, pior, pode gerar aversão à prática de atividades na natureza. “Quando você se sente inferior por estar com equipamentos mais simples, corre o risco de desistir e partir para o futebol. Como eu vou pagar um curso de escalada e deixar de comprar comida? Tive que aprender na raça, me expondo, e, através disso, sigo estimulando outras pessoas”, conta Ariel.

Carla Romão traz uma reflexão importante diante das experiências vividas por Diego e Ariel, sobre a ocupação dos ambientes naturais e o preconceito nas montanhas perante as barreiras socioeconômicas. “É uma loucura se a gente for pensar em como o esporte se organiza. É um modelo europeu, mas comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas já praticavam o que a gente chama de montanhismo desde tempos imemoriais. Esse modelo importado cria um perfil. Quando você vê pessoas negras não tão bem equipadas na montanha, você tende a achar que aquele não é o lugar delas. Mas o espaço também é delas.”

Diego Cruz continua sonhando alto, mas ainda enfrenta desafios. Após a inscrição em um curso voltado para alta montanha pelo Clube Paraense de Montanhismo, o montanhista foi selecionado para uma expedição no Passo de São Francisco, na Argentina. Mas novamente esbarrou com a questão financeira. Dessa vez, está recorrendo aos amigos e recebeu o apoio do GPM (Grupo Paulista de Montanhismo), que ajudará com os equipamentos.

“Eu, um negro que vim da periferia, crescido ao redor de pessoas que não têm essa cultura, tive a sorte de conhecer pessoas que viram a vontade que eu tinha e me ajudaram. Se não fosse isso, talvez eu nunca tivesse, inclusive, me tornado um profissional da área.”

Invisibilidade, falta de acolhimento e sensação de não pertencimento

Até hoje a falta de acolhimento e de senso de pertencimento são fatores que incomodam Ariel Silva em suas atividades pessoais e profissionais na natureza, o que gera dores constantes. “Quando você está em um lugar onde a maioria esmagadora são pessoas brancas, elas não te valorizam até você provar que é capaz. Quebrar essa barreira de reconhecimento é muito difícil. Você passará por vários bloqueios. Ali é o meu lugar, mas quando você sente que não pertence a ele, é muito triste, e muitas vezes dá vontade de sair.”

Ariel Silva

Ariel Silva

A falta de visibilidade também foi uma questão enfrentada por Aretha Duarte antes da conquista do cume do Monte Everest: “Antes, eu chegava em um ambiente e as pessoas não necessariamente me reconheciam como líder da expedição, porque geralmente guias não são mulheres e, muito menos, uma mulher negra. Afinal de contas, elas pensam: ‘Como ela teve tempo e condição de se preparar e se especializar nisso?’”

Outro incômodo da montanhista é olhar para o lado e não ver outras pessoas pretas no grupo. “Quando eu guio clientes na montanha, raramente tem uma pessoa negra. Esse é o exemplo mais claro que pode se dar de racismo na montanha”, conta Aretha. Esse sentimento também gera desconforto em Denilson Silva, do Negritude Outdoor: “Fico pensando: ‘Por que só eu tenho condições de estar ali? Por que só eu tenho uma folga no sábado e posso fazer uma travessia?’”

Para Carla Romão, essa barreira está associada a uma exclusão silenciosa, que não diz respeito a um discurso direto de preconceito, mas de comportamento sutil. “Você deixa a pessoa se associar a um clube, por exemplo, participar das atividades, mas sutilmente você cria situações em que aquele indivíduo não se sente à vontade. Eu já vivenciei essa exclusão simbólica, é uma espécie de sutileza que te informa que você não é bem-vinda ali.”

A montanhista frisa que muitas pessoas ficam por insistência, por serem resistência, mas que, às vezes, reflete sobre seguir em frente. “A maneira como te expulsam gera efeitos na sua individualidade, mas ao mesmo tempo você quer estar na montanha. Você conta nos dedos as pessoas negras em clubes. Muitos nem questionam a falta delas”, conta Carla que decidiu fazer a sua inscrição no CERJ ao avistar da porta do clube um homem negro, de cabelo black power. “Quando vi o Zé, me senti acolhida porque tinha alguém que parecia comigo naquele espaço. Ele me acolheu somente por sua existência. Decidi que ali era o meu lugar.”

Carla Romão em uma travessia em Bariloche

Carla Romão, durante uma travessia em Bariloche

Carla reforça a necessidade de ampliar o debate sobre inclusão entre órgãos responsáveis para tornar as atividades outdoor acessíveis a todos. “Quando a gente fala da perspectiva racial em ambientes de montanha, as federações e as associações têm que tomar diretrizes. Não podemos ignorar que o esporte no Brasil não pode ser branco, ele tem que ser, no mínimo, multirracial para contemplar todas as experiências das pessoas que vivem no cenário brasileiro. Todas as pesquisas comprovam que a inclusão em uma prática esportiva melhora a nossa percepção sobre a vida.”

Falta de representatividade no mercado outdoor e na mídia

“Sempre escuto que a montanha é para todos, mas não é verdade. Por muito tempo, a gente não via representatividade, tanto de profissionais quanto de notícias na mídia. Eram sempre pessoas brancas, em sua maioria homens, porque tiveram pais que os levavam para esses ambientes desde pequenos”, Diego Cruz

Outro motivo de afastamento da população preta das atividades na natureza é praticado indiretamente pela publicidade e pela mídia. A falta de modelos negros em catálogos de lojas e de histórias de protagonismo nos canais de notícias geram distanciamento e falta de identificação. “Ninguém fala que ali não é lugar de preto, mas sinto que uma loja sem modelos pretos não me representa”, conta Ariel.

O guia conta que também se sente frustrado ao pesquisar um destino, já que as histórias sempre são contadas por pessoas brancas. “Dificilmente jovens negros de periferia são protagonistas. A gente tem que estimular esse pessoal a contar suas histórias para que outras pessoas vejam que é possível, que a força vem de dentro. Precisamos ser mais vistos. A exposição virtual e presencial é o caminho.”

Para Aretha, a falta de representatividade negra em ambiente de montanha é reproduzida em rodas de bate-papo, nas redes sociais e nos meios de comunicação. Infelizmente, segundo a atleta, as buscas de fotos em bancos de imagens voltadas a escaladores e montanhistas são sempre as mesmas – o homem branco. Nunca é uma mulher, e muito menos uma mulher negra. Nem o homem negro.

Muitos conteúdos e opiniões publicados nas redes sociais também corroboram para a falta de representatividade e para a propagação do racismo no ambiente outdoor. Aretha relembra um triste episódio ocorrido em uma postagem em sua própria rede, quando propôs uma reflexão sobre a escalada ao Everest ser uma atividade racista. A postagem viralizou, e as críticas vieram em peso por pessoas mal-informadas e mal-intencionadas.

“Muita gente questionou porque a montanha era racista e não democrática, já que permitia você estar lá. Sim, ela está lá à disposição, mas a grande questão é o acesso para estar lá. A forma como a sociedade está estruturada não permite equidade em relação ao acesso e às oportunidades. Essa é a grande questão.”

O episódio fez Aretha enxergar o quão atrasados estamos em relação a um entendimento histórico e cultural sobre nossas origens e as conquistas da comunidade negra. “Há pessoas que ainda não entenderam a limitação que existe, imposta há centenas de anos, e que não conseguem compreender que a pessoa negra está há 500 anos tentando ter um tipo de ascensão e ocupação semelhante às oportunidades que foram dadas às pessoas brancas no passado. Existe muita história a ser estudada.”

Como estimular a inserção de pessoas pretas em atividades na natureza

Negritude Outdoor: conexões e visibilidade para pessoas negras

“O principal papel do Negritude Outdoor foi criar uma rede de apoio para saber o que está acontecendo, mostrar que nós existimos, o que temos que fazer para nos proteger diante de práticas de afastamento racial ou racismo. Um lugar para as pessoas respirarem, fazendo o que gostam com as pessoas que gostam”, Denilson Silva.

Denilson Silva e Leo Ferreira fundaram o Negritude Outdoor após uma conversa sobre a representatividade negra em atividades outdoor. “Ali, me bateu um sininho de que eu conhecia poucas pessoas. Alguns familiares praticam as atividades, mas até as minhas saídas eram com pessoas brancas. Começamos a fazer essa busca e foi difícil achar pessoas negras. Em um país com percentagem de negros e pardos tão grande, a gente não encontrar personagens facilmente foi bem esquisito.”

Hoje, o Negritude Outdoor conecta pessoas pretas de todo o Brasil para fazer trilhas, além de promover discussões e palestras sobre o tema racial. “Nas nossas saídas, enquanto caminhamos na trilha, trazemos as nossas questões. Quando pausamos para o lanche, conversamos sobre o nosso trabalho e outros assuntos enquanto pessoa negra. A trilha é o ambiente que gostamos de estar, mas a natureza se torna outro lugar. Ali, estamos à vontade.”

Negritude Outdoor

Foto: acervo Negritude Outdoor

Diego Cruz é um dos membros do Negritude Outdoor, e reforça a necessidade de levar a cultura de montanha para quem não tem acesso. “Quando nos organizamos em grupos e incentivamos as atividades na natureza, trazemos visibilidade para as pessoas que não conhecem o universo outdoor. O objetivo é que elas vejam e pensem ‘por que não posso?’. Dessa forma, quebramos algumas objeções. O espaço proposto pelo Negritude Outdoor é seguro, onde falamos sobre as nossas percepções de mundo, acontecimentos e situações desconfortáveis que vivenciamos.”

O Negritude Outdoor também possui um hub que reúne profissionais de atividades na natureza – uma forma de conectar entusiastas a guias pretos e promover o trabalho desses profissionais. “Nas nossas saídas, há uma reflexão constante: muitas pessoas pretas não saem em grupos de trilha mais conhecidos porque acham que é um ambiente muito diferente da realidade sociorracial delas, e isso gera um bloqueio. Elas veem os destinos na mídia, mas não se enxergam nesses grupos. Então, resolvem procurar grupos que tenham mais negros e não acham, o que gera outro bloqueio. E aí a pessoa nunca mais faz. O Negritude Outdoor promove essa conexão.”

Centro de Escala Urbana: escalada como base para transformar vidas

O Centro de Escalada Urbana (C.E.U) é uma iniciativa comunitária criada em 2010 para tornar a escalada acessível aos jovens das comunidades do Rio de Janeiro. Por meio do esporte, o projeto vem transformando a vida de centenas de jovens de 13 a 17 anos.
À frente da coordenação do C.E.U está Katia Agatha, de 21 anos, que teve seu primeiro contato com projeto aos 16 anos por meio de uma colônia de férias – porta de entrada para que se tornasse aluna fixa e, mais tarde, uma jovem monitora.

Centro de Escalada Urbana (C.E.U)

Foto: acervo Centro de Escalada Urbana (C.E.U)

Katia sonhava em ingressar na faculdade de ciências sociais e teve a sua vida transformada pelo projeto. “Eu estava muito desanimada, achando que faculdade não era coisa para mim. Eu moro na comunidade do Turano, no Rio de Janeiro, e sempre estudei em colégio público à noite. Essa realidade era muito distante para mim e me questionava por que sonhar.” Incentivada pela coordenadora na época, Katia cursou um pré-vestibular comunitário e passou a entender que era possível trilhar novos caminhos. “O C.E.U mudou meu pensamento e a forma como eu me enxergava.”

Como atual coordenadora do projeto, Katia tem contato direto com os alunos e seus pais, entendendo suas demandas. Além de organizar aulas de escalada em um ginásio no bairro de Botafogo, ela está à frente de passeios culturais, esportivos e ambientais, além de oficinas que apresentam aos jovens novas profissões. O projeto também promove um curso básico de escalada na rocha de forma personalizada, com certificação, e a inclusão dos novos escaladores em festivais e campeonatos em diversos estados.

“A escalada é a porta de entrada para trabalharmos outras questões que fazem parte da vida dos jovens. O esporte é um catalisador. Queremos que os jovens conheçam mais a cidade em que moram e entendam que podem circular por todos os lugares. Organizamos os passeios de acordo com as demandas que eles trazem, pensando sobre o que seria interessante eles conhecerem.”

Centro de Escalada Urbana (C.E.U)

Foto: acervo Centro de Escalada Urbana (C.E.U)

Por meio das suas atividades e da inspiração de Katia, o C.E.U tem a missão de ajudar os jovens a não desistirem dos seus sonhos. “Muitos não sabem responder qual seu sonho ou jogam as expectativas lá para baixo por estar mais perto da sua realidade. Por meio da prática da escalada, da descoberta de outros lugares, mostramos que eles podem ocupar outros espaços e fazer diversas coisas. O C.E.U me fortaleceu e queremos multiplicar essa força.”

Favela Radical: esportes na natureza como ferramenta de inclusão e prevenção

“A natureza transformou a minha vida, e hoje eu transformo vidas, realizando o meu sonho. Acredito que um mundo diferente é possível porque temos os recursos naturais como ferramenta de trabalho”, Jefferson Quirino.

O Favela Radical atravessa a história de vida de seu fundador. Nascido e criado no Morro do Turano, Jefferson Quirino teve uma adolescência conturbada, passando pelo sistema carcerário e vivenciando a escassez de oportunidades na comunidade.

Em 2010, ao deixar para trás o presídio pela última vez, resolveu interromper definitivamente um ciclo de sua vida. Foi trabalhar no Jornal do Brasil, e ao fazer buscas no acervo local sobre a sua comunidade, sentiu-se incomodado. “Queria saber como os jornais pautavam a realidade do meu território. Percebi que só se falava sobre violência e coisas negativas. Pensei: ‘Estamos no Turano, a favela em que nasceu Jorge Ben Jor, como só se fala sobre criminalidade?’”

A grande virada de chave para a sua transformação de vida e, anos depois, de sua comunidade, veio em 2014. Um amigo surfista recém-chegado da França o presenteou com uma prancha. Ali, Jefferson entendeu que tinha uma ferramenta potente para ressignificar a sua realidade e a de outras pessoas. A ideia de montar um projeto social começou a se materializar após Jefferson trabalhar no SESI, em um processo de pacificação, e adquirir conhecimento sobre as demandas sociais da sua comunidade.

Em 2017, surgia o Favela Radical, que promove aulas de surf, escalada e skate, e já impactou mais de 700 crianças e jovens de 7 a 17 anos. “O projeto surgiu para desenvolver os esportes na favela, e fazer com que histórias como a minha não fossem mais contadas. Ele deixa de ser reparativo para ser preventivo. Transformamos o nosso território de forma radical, em uma favela radical, de forma revolucionária, ofertando atividades e ações incomuns nesses lugares. Aqui, os moradores são protagonistas.”

Favela Radical

Foto: acervo Favela Radical

Jefferson conta que a escalada sempre esteve presente na favela, de forma não organizada. O projeto trouxe aos jovens a oportunidade de instrumentalização, segurança e orientação para que eles desenvolvam de forma correta uma habilidade orgânica. “Desde crianças, eles escalam muros atrás de pipa, árvores atrás de frutas. Portanto, sob o olhar esportivo, a escalada pode ser um esporte elitizado, mas sob a ótica prática, ela é 100% democrática.”

Além de explorar a parede de escalada instalada na comunidade, os jovens da comunidade do Turano vivenciam experiências em atividades externas, por meio de um ecossistema de parceiros criado pelo Favela Radical. “O C.E.U é nosso grande padrinho, e frequentamos o ginásio deles. A Aretha Duarte é nossa embaixadora, e a Outward Bound Brasil (OBB) organiza experiências socioemocionais na natureza para nossos jovens, com o Projeto Azimute. No início do ano, fizemos uma expedição de trekking na Serra da Mantiqueira e, em breve, 15 crianças participarão de uma atividade de canoagem.”

Favela Radical

Foto: acervo Favela Radical

A educação ambiental também é um forte pilar na grade de atividades do Favela Radical, fortalecendo a consciência de mínimo impacto. “Precisamos do mar, trilhas e praças limpos, sem influência de descartes irregulares de materiais. Os jovens aprendem que a preservação ambiental vale para todas as áreas da vida, como o descarte correto do lixo de casa e da cantina da escola. Mostramos que o papel de bala jogado na rua vai parar no mar, que o copo de plástico jogado na trilha prejudica os animais, e que, por outro lado, se descartados corretamente, os resíduos podem se tornar troféus e pranchas.”

Ao transformar a sua vida, Jefferson segue seu sonho de impactar mais pessoas com sua experiência, dedicação e olhar atento à nova geração. “A natureza não tem cor, não tem status social e não respeita o CEP. Eu gosto de olhar para ela como um espaço acolhedor, transformador e de cura. Se as pessoas soubessem do seu impacto em nossa vida, em todos os sentidos, não se questionariam se deveriam ou não estar. Apenas estariam.”

O trabalho de Aretha Duarte para inspirar os jovens

“Eu acredito muito na ativação de um poder que chamo de poder interno bruto, que para mim é o potencial de sonhar e realizar. Ativar o potencial que cada um de nós tem de conquistar grandes realizações”, Aretha Duarte.

Com o objetivo de transformar suas realizações em resultados coletivos e fazer com que as oportunidades cheguem a mais pessoas, Aretha Duarte, além de apoiar o Favela Radical e o projeto Azimute, da OBB, é embaixadora do Pés Livres, na Tanzânia, fundada por brasileiros para atender crianças e jovens locais.

Favela Radical, Aretha Duarte e OBB - Foto: Abelardo Walsh

Aretha Duarte, favela radical e Outward Bound Brasil – Foto: Abelardo Walsh

Em 2023, a montanhista construiu uma parede de escalada sustentável aberta e gratuita no Parque Linear do Mingone, na região do Jardim do Capivari, periferia de Campinas, onde nasceu, cresceu e reside até hoje. “Algumas pessoas não acreditam no seu potencial por falta de oportunidades, estruturação, questões sociais, econômicas, educacionais, de saúde. Mas à medida que a gente conduz essas pessoas ao acesso ao esporte ou à educação, elas se sentem mais empoderadas, mais pertencentes e em mais condições de viver essa vida fantástica e cheia de oportunidades, especialmente na natureza. A minha motivação é dar oportunidade de acesso.”

Aretha Duarte e a parede de escalada sustentável em Campinas. Foto: Rosita Berlinky

Parede de escalada sustentável em Campinas/SP. Foto: Rosita Belinky

Em 2024, no mês da Consciência Negra, Aretha conduziu, na Tanzânia, uma expedição exclusiva para pessoas negras, rumo ao Kilimanjaro. “Foi uma proposição para possibilitar que pessoas negras do Brasil possam praticar atividades em alta montanha fora do país, justamente porque eu não queria ser a única.”

A expedição Sankofa – que significa “retorno à ancestralidade” – era uma oportunidade não somente de praticar a escalada, mas de dar a oportunidade ao grupo de imersão na cultura tanzaniana, uma possibilidade de retorno ancestral à sua história. “Nos sentimos à vontade, entre irmãos, enquanto pessoa negra. Entendemos o valor de identidade, de senso de pertencimento, de beleza. Voltamos realizados, engrandecidos e empoderados, tendo orgulho da nossa história, de quem somos.”

Expedição ao Kilimanjaro em 2024 - Foto: Gabriel Tarso

No Kilimanjaro, em 2024. Foto: Gabriel Tarso.

Ao inspirar e empoderar as pessoas por meio do seu trabalho e potência, Aretha serve de exemplo para que todos façam a sua parte na promoção da inclusão. “A responsabilidade é de todos nós. Podemos encorajar as pessoas a sempre fomentar essa prática do montanhismo da maneira que elas puderem, seja conduzindo uma atividade que já conhece, investindo em projetos sociais, comprando uma caneca, uma rifa para ajudar os projetos, colaborando com um financiamento coletivo.”

Aretha frisa que a inclusão e a diversidade trazem benefícios para toda a sociedade. “Assim, ficamos todos conectados para promover um mundo melhor, garantindo um futuro em que os resultados são coletivos. Portanto, gostaria de chamar todo mundo para essa corresponsabilidade. O mundo e a mudança que queremos dependem de todos nós.”

‘Quero levar a escalada para a Vila Olímpica’

Como mensagem final, o guia e montanhista Ariel Silva incentiva que as pessoas pretas acreditem na enorme força que carregam diante da construção de suas trajetórias e reforça que honrar as suas histórias e esforços diários é tão importante quanto as habilidades técnicas para estar em atividades na natureza.

“Quando eu estou com alguma dificuldade durante a prática na montanha, eu fecho os olhos e vejo o quanto sou forte por tudo o que passei e que as pessoas da minha comunidade passam. Consigo me enxergar em todas elas. Minha força está nessas imagens: eu enxergo a favela em que nasci e as pessoas que não consigo levar comigo. Essa energia me move e me faz buscar o que eu quero.”

E o que ele deseja é grandioso: levar a escalada para a Vila Olímpica e formar guias de periferia. Mas diante do desafio financeiro, ele faz o que pode – e não é pouco. Uma vez por mês, Ariel ministra um curso de escalada para pessoas da comunidade, além de levá-las para a natureza de forma subsidiada dentro dos grupos de clientes que atende.

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Isabelle de Paula

Isabelle de Paula é jornalista, sócia-fundadora da DePaula Comunicação. Apaixonada por ouvir e contar histórias, atua como ghostwriter, escrevendo livros e conteúdos para diversas plataformas, e assessora de imprensa, propagando narrativas e trajetórias de pessoas, marcas e empresas. Parceira do Gear Tips, assina projetos especiais e ajuda a empresa a ganhar visibilidade na mídia.

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