Fim do caminho – A vida depois de um thru-hike

O que a vida “normal” nos reserva após o término da grande caminhada, um thru-hike?

Passamos oito horas caminhando sob uma tempestade ao lado da rodovia. Conforme os caminhões passavam, eles nos borrifaram com água suja da estrada. Assim foi nosso último dia na Te Araroa, os 3006km de caminhada que vivemos e respiramos nos últimos cinco meses e meio em um thru-hiking cruzando a Nova Zelândia.

Eu estava me preparando mentalmente para um fim anticlimático. Como poderíamos comemorar um marco tão grande de uma forma que o faça parecer concluído? Afinal, amanhã nós não colocaríamos nossas mochilas e continuaríamos caminhando.

Enquanto eu tremia em minhas roupas de chuva encharcadas, pensei: ‘isso é ainda pior do que eu imaginava’. Eu só queria acabar, para começar aquela adorável vida quente e limpa pós-trilha – e nunca mais ter que andar debaixo de outra tempestade.

No entanto, conforme nos aproximávamos do terminal sul da trilha, na cidade de Bluff, a chuva parou milagrosamente e a dor aguda em meus joelhos e ombros diminuiu, entorpecida pela adrenalina crescente. Viramos a esquina e vimos a placa de sinalização. O sinal que vi em inúmeras fotos de pessoas que terminaram essa caminhada.

As emoções aumentaram, especialmente quando vi três amigos de caminhada inesperados que haviam terminado no dia anterior. Eles correram até nós com pipocas e champanhe. Larguei a mochila pesada que carreguei por toda a extensão da bela paisagem campestre da Nova Zelândia e meu corpo tremia quando os abracei. “We are the Champions” começou a tocar na playlist enquanto estouramos nosso champanhe, seguido por “Cold as Ice”, “I’m Still Standing” e “Singing in the Rain”. Uma multidão de curiosos começou a aplaudir enquanto Marco, o namorado que conheci na trilha, me ajudou a subir até o topo da placa de sinalização.

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Thru-hike - Sinalização no final da Te Araroa Trail
Eu em cima da placa de sinalização no final da Te Araroa Trail, em Bluff

Foi um daqueles momentos que parecia ter saído de um filme. Na verdade, parecia completo de uma maneira que eu não pensei que seria. Nossa história terminou em grande estilo.

Quando a chuva recomeçou, nosso tremor voltou. Empilhamos as mochilas molhadas e os sapatos enlameados no carro que nossos amigos haviam alugado. Demorou 20 minutos para percorrer os 31 km que havíamos caminhado naquele dia. No jantar, contamos ao nosso garçom sobre nossa conquista e ele disse: ‘Sim, posso sentir seu cheiro – você pode por favor tirar sua jaqueta para não incomodar os outros clientes?’

DE VOLTA À REALIDADE NORMAL DEPOIS DE UM THRU-HIKE

Então era hora de voar de volta para a vida que eu vivia antes. Fiquei animada para ver meus amigos e família, para conhecer a sobrinha que nasceu enquanto eu estava fora, para usar roupas que não fediam.

Uma caminhada completa, assim no estilo thru-hiking, muda a sua vida. É uma boa maneira para escapar de um trabalho sem futuro, para superar o rompimento de um relacionamento ou para entrar em uma nova fase da vida. Voltar para casa depois de uma experiência tão poderosa pode ser estranho e difícil. Uma vez que a aventura termina, você tenta se encaixar na vida normal enquanto, ao mesmo tempo, tenta levar uma existência diferente. Retornar para este cenário no meio de uma pandemia adicionou algumas dificuldades extras nessa balança.

Marco e eu nos despedimos no aeroporto. Com uma pandemia tomando conta do mundo enquanto estávamos na trilha, não havia chance de viajarmos juntos. Eu voltaria para casa, na Austrália, para um mês de quarentena, e ele voltaria para a Suíça. Havíamos passado meses juntos percorrendo a trilha – 24 horas por dia, 7 dias por semana e não tínhamos certeza de quando nos veríamos novamente.

Retornei para um mundo acelerado com agendas lotadas. Fiquei surpresa como isso pode ser ruim para mim. Eu rapidamente me senti vazia, a COVID impactou a vida de todos e ninguém tinha o espaço mental livre para entender o que eu estava passando ao tentar me adaptar nesse novo mundo. Eu me perguntei se já tinha esgotado minha cota de felicidade do ano. Talvez eu só precisasse seguir em frente até que 2020 finalmente acabasse. Muitos thru-hikers atestarão essa dificuldade pós-caminhada na transição de volta à vida normal.

Tive a sorte de voltar a trabalhar com alguns antigos clientes de fotografia, de modo que rapidamente consegui uma renda. Mas a vida de uma fotógrafa freelancer é exatamente o oposto da vida de uma thru-hiker. É difícil ter uma rotina adequada. Eu tinha sessões de fotos chegando em horários e dias aleatórios. Eu também estava sem grana após a caminhada, então tudo que tinha era um escritório improvisado no meu quarto. Todos ao meu redor pareciam ter tudo planejado, enquanto eu tentava juntar as velhas peças da minha vida.

Decidi que a melhor coisa a fazer para me ajudar na transição para essa vida pós-caminhada era fazer outra trilha. Escolhi a “Cabo a Cabo” (Cape to Cape Walk Track), uma trilha de 135 kms ao longo da costa da Austrália Ocidental, parecia uma boa opção. Alguns amigos achavam que eu estava louca por querer sair de uma trilha longa e ir para outra logo depois. Mas o fato é que eu não tinha apenas terminado uma trilha de longo curso – eu tinha me tornado uma caminhante, uma thru-hiker.

Antes de percorrer toda a “Te Araroa Trail”, eu não teria tomado essa decisão de fazer as malas e ir para uma trilha tão facilmente. Mas como eu tinha uma semana livre, entrei no carro, dirigi para o sul até o início da “Cape to Cape” e comecei a andar. Eu já tinha o equipamento de que precisava e foi uma caminhada curta e fácil em comparação com a minha experiência na Te Araroa Trail. Mas foi o suficiente para me lembrar que, embora eu ainda estivesse redescobrindo muitas coisas em casa, eu ainda era a pessoa que me tornei na Te Araroa. Conforme eu desmontava o acampamento todos os dias e começava a andar, todas essas preocupações se dissipavam. Voltei da “Cape to Cape” preparada para enfrentar o que estava por vir.

Te Araroa Ttail, thru-hike na Nova Zelândia

PLANEJE NOVAS METAS

Durante a minha caminhada, senti que estava trabalhando para construir algo maior. Passei de um objetivo para o próximo – a cada passo, a cada quilômetro, a cada manhã eu ficava mais perto do fim. E quando a trilha terminou, a minha vida ganhou ares de feriado. Era um prazer dormir até tarde e fazer somente o que eu queria. Mas rapidamente comecei a sentir a falta de sentido nessa “existência sem objetivos”.

Para preencher esse espaço, tenho me concentrado em colocar a trilha no papel, dia a dia, na esperança de transformá-la em um livro. Cada um encontra a sua forma para lidar com isso, meu namorado, por exemplo, passa os dias planejando e fazendo todo o seu equipamento para a próxima trilha.

O FIM DA ENDORFINA PÓS THRU-HIKE É REAL

Depois de cinco meses na trilha, eu era uma viciada em endorfina. Passei de nove ou dez horas de caminhada por dia para quase nenhum exercício. Isso explica por que estou tão obcecada em ir para o muro de escalada da academia.

A FADIGA COTIDIANA DAS TOMADAS DE DECISÕES

A tomada de decisão é fácil (ou até inexistente) na trilha. A que horas vou começar a caminhar? Quantos quilômetros vou andar hoje? Devo comer uma segunda pizza? Eu me rendi à trilha, aos marcadores de quilometragem, aos mapas e às minhas anotações. Às vezes, era irritante seguir uma rota que outra pessoa havia traçado. Eu realmente precisava andar por um pântano agora? Mas na maioria das vezes, não ter que tomar grandes decisões me deu espaço mental para pensar livremente – sem ter as preocupações da vida normal se aglomerando na minha cabeça.

Voltar para casa após uma trilha de longo curso parece um renascimento, da segurança do útero para um mundo brilhante, barulhento e agitado. De repente, minha vida está cheia de decisões e eu estou sem prática. Com que frequência preciso lavar minhas roupas? Devo tomar um banho hoje? Depois de alguns meses em casa, me sinto um pouco menos oprimida por essas questões. Embora eu ainda não limpe minhas roupas com freqüência suficiente…

Tal como acontece com muitas realizações pessoais, a maioria das pessoas não consegue realmente compreender a magnitude do que a trilha significou para mim – e acho que é mais fácil simplesmente não falar sobre isso. Tenho um milhão de histórias borbulhando em minha mente, mas não quero me tornar aquela pessoa só sabe conversar sobre a experiência na trilha. “Ah, você gosta de queijo?” Bem, uma vez, quando eu estava caminhando na Te Araroa Trail, comi tanto queijo que pensei que fosse morrer…

Amigos de jornada durante o thru-hiking

Manter contato com a Tramily me ajuda muito com isso. Ela estava lá e fica feliz em relembrar essas memórias da trilha junto comigo. Hoje em dia parece que eu vejo cada memória através de “óculos cor de rosa”. Ao telefone com Marco, falamos sobre a vez em que caminhamos por um rio gelado, gritando de dor por causa do frio.

– Uau, aqueles eram os dias, eu disse.

Então ele me lembrou o quanto nós dois odiamos cada segundo daquela travessia gelada. E aí, por um breve momento, eu gostei de estar de volta em casa, usando meias limpas e secas – e de estar a apenas alguns metros de distância do meu chuveiro quente.

A LUZ NO FINAL DA TRILHA, LIÇÕES DE UM THRU-HIKE PRA VIDA

Lidar com o esse vazio pós-caminhada é difícil, mas o lado positivo de voltar para casa de após uma trilha de longo curso é que estou muito mais preparada para lidar com as dificuldades que a vida traz. Nunca esquecerei as palavras sábias do meu amigo de trilha, Eli, que disse, enquanto espremia a água de seu saco de dormir durante uma das famosas tempestades da Nova Zelândia:

– Uma coisa que sabemos é que todo momento terrível passa…

As boas coisas vêm e vão também; observar o nascer do sol nos picos das montanhas, avistar Keas selvagens (o único papagaio alpino do mundo) caminhando por florestas cobertas de musgo… Estas são algumas lembranças lindas que levarei para a vida toda.

Por do sol na trilha - Te Araroa Trail

Amigos e familiares me disseram que pareço muito mais segura agora, mais fundamentada. Andar no meio de uma tempestade de neve com as roupas molhadas e me preocupar com o fato de estar com hipotermia me ensinou como posso ser forte. Ter um estômago ruim e ter que “cuidar dos negócios” ao lado de uma rodovia me ensinou a não me levar muito a sério. Ser derrubada por um vento forte e bater minha cabeça em uma pedra, me ensinou firmar melhor meus pés, o que talvez metaforicamente me ensinou ser mais pé no chão? Bem, não sei. Acho que nem todas as lições que aprendemos são lineares.

É fácil lamentar a vida que vivi na trilha. E a versão de mim mesma que eu era enquanto caminhava. Eu li em algum lugar que a dor nunca vai embora, nossa vida apenas cresce em torno dela até que a dor não parece ser tão grande. É nisso que estou focando. Crescendo uma vida plena em torno das minhas memórias da trilha. Então eu sei que a vida que estou planejando será muito especial.

E se você chegou até este texto mas não viu os outros dois que foram publicados antes aqui no Gear Tips basta acessar os links:

1. Dicas de alimentação para um trekking longo

2. Algumas dicas após caminhar 400km na Te Araroa Trail

Texto: Louise Coghill / Blog da Sea to Summit – com adaptações

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Equipe Gear Tips
Artigos: 103

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