A Força das Mulheres nas Trilhas

“- E não vai nenhum HOMI junto?”
“- Ô Zé, olha essas meninas, elas vão subir sozinhas!”

O ano era 2016 e essas duas frases me acenderam um alerta! No dia da mulher (08 de março) os holofotes se voltam a nós! Não deveria ser assim. Existem outros 364 dias no ano, mas neste dia celebramos não apenas as conquistas do passado, mas também a resistência, a resiliência, a determinação e a força das mulheres em moldar o presente e criar um futuro mais igualitário.

Continuamos na busca pela igualdade de gênero, as mulheres ganham cada vez mais destaque. É fundamental reconhecer os espaços onde as mulheres estão conquistando seu lugar de direito. Uma dessas áreas é o mundo do trekking e da aventura ao ar livre.

Mas antes de falar das mulheres no trekking preciso explicar o contexto das primeiras frases deste artigo, lembra? Lá no comecinho! Pois bem, eu sou Laila Mantra, guia e proprietária de uma agência com mais de 12 anos no mercado, mas acima disso sou mulher! Estas condições me colocaram em um relacionamento abusivo e com o tempo uma depressão profunda que minara minha vontade de viver.

Foi na caminhada (mais precisamente no Caminho de Santiago) que encontrei a vontade de seguir… de viver! Depois disso veio uma separação bem turbulenta, a transição de carreira, cursos e mais cursos até ingressar no mundo das guiadas.

Mulheres no trekking

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Mas o fato é que eu trazia dentro de mim uma dor que estava cicatrizando, mas que ainda doía! Como eu me sentia tão machucada por um homem, o meu escudo foi me masculinizar! Frases como “eu sou mais macho que muito homem” eram frequentes em minhas falas. Internamente eu ainda escutava a historinha repetida por anos de que “mulher é o sexo frágil” e eu não queria ser.

Na profissão de guia eu queria ser destaque no mundo masculino, ainda havia poucas mulheres guiando, e empreendendo neste universo menos ainda. O tempo inteiro eu sentia necessidade de provar meu valor para os homens.

Foi então que em 2016 fui fazer uma trilha de reconhecimento com duas amigas (Shirley e Deysi) lá no Capim Amarelo, porta de entrada da Serra Fina, e aí tudo mudou. Se lembra das frases do início? Elas viraram uma chave na minha cabeça.

Ao estacionar o carro próximo à Toca do Lobo (onde a trilha começa), fui conversar com uma moradora local. Naquela época tudo era diferente por lá, estávamos em 2016! Existia uma casa no fim da estrada e a Serra Fina não era comercializada e mantida por uma empresa que hoje faz o controle da entrada e cobra ingressos para trilhar por lá.

Grupo só de mulheres nas trilhas

Quando a moradora local se deu conta que eram somente três mulheres que iriam fazer a trilha, se mostrou surpresa, preocupada e soltou aquelas frases do início deste texto… “Não vai nenhum ‘homi’ junto?”

Naquele momento me dei conta do que sempre esteve escancarado. Olhei para minhas companheiras de trilha e questionei:

“Como pode, nos dias de hoje, causar tanta estranheza alguém ver mulheres fazendo coisas perfeitamente possíveis e normais sem a presença masculina? A partir de hoje quero trazer exclusivamente grupos femininos para a montanha!”

Foi ai que, em junho de 2016, nasceu o Mochila de Batom, um projeto pioneiro que trouxe uma nova perspectiva para as trilhas na montanha: grupos exclusivamente de mulheres. A ideia era simples, mas transgressora: proporcionar um ambiente seguro e acolhedor para que as mulheres pudessem explorar a natureza, desafiarem-se, tornarem-se autossuficientes no planejamento e execução de um trekking, e acima de tudo, conectarem-se uma com as outras.

Mulheres não precisam estar em grupos só de mulheres, mas podem se quiserem. É só questão de escolha.

A força das mulheres nas trilhas

É claro que antes disso outras mulheres já trilhavam sozinhas e ocupavam os espaços no montanhismo. Mas esse era, até onde eu sabia, o primeiro grupo exclusivamente feminino organizado por uma agência, inclusive com guias mulheres. Assim poderíamos atingir as camadas mais distantes deste universo potente.

O que fez e ainda fazem as trilhas com mulheres uma experiência única?

Para mim elas representam uma quebra de paradigmas. Em um mundo historicamente dominado por homens, as trilhas femininas afirmam que a natureza é para todos, independentemente do gênero. É uma afirmação de que as montanhas, florestas e rios são espaços de liberdade e crescimento para todas as pessoas.

Além disso, as trilhas com mulheres são uma celebração da sororidade. Quando nos aventuramos juntas na natureza, descobrimos o poder da união, do apoio mútuo e da colaboração (socialmente tão questionado).

Guias mulheres no Monte Roraima

Para quem acredita que o montanhismo sempre foi igualitário vamos aos fatos:

O montanhismo, como prática esportiva, tem suas raízes históricas em diferentes partes do mundo. Sua origem remonta a séculos atrás, quando as montanhas eram vistas como lugares misteriosos e muitas vezes inexplorados. No entanto, o montanhismo moderno, tal como conhecemos hoje, teve seu início principalmente na Europa, durante o século XIX.

O Mont Blanc, nos Alpes Franceses, é frequentemente considerado um dos berços do montanhismo moderno. A primeira expedição bem sucedida ocorreu na década de 1780 por Michel Paccard e Jacques Balmat (homens). Já a primeira mulher foi Henriette d’Angeviele em 1838, 52 anos depois. Este é só um exemplo dentre tantos outros.

Mas se somos igualmente capazes, porque demoramos muitos para conquistar espaço no montanhismo?

Historicamente, as mulheres foram excluídas e desencorajadas a participar de atividades consideradas “masculinas” ou associadas ao mundo selvagem e perigoso das montanhas. No entanto, ao longo do tempo, as mulheres desafiaram estas normas e começaram a se envolver cada vez mais na prática do montanhismo.

As primeiras mulheres a se envolverem nestas atividades enfrentaram uma série de desafios. Uma das principais barreiras era a resistência cultural e social que desencorajava as mulheres de participarem de atividades consideradas fora do seu âmbito natural. Além disso, muitas vezes enfrentavam críticas e desaprovação da sociedade, que viam a participação das mulheres em aventuras como impróprias ou perigosas.

Trilhar, praticar trekking, montanhismo, escalar, ainda são vistas como atividades de “poder e dominação”, não é atoa que utilizamos expressões militares até hoje:

1. Ataque ao Cume (Summit Push)

Com origem militar refere-se a uma ofensiva concentrada e determinada para alcançar um objetivo estratégico. No montanhismo é a fase final da escalada para chegar ao cume.

2. Avanço (Advance)

Na linguagem militar significa mover-se para frente em direção ao inimigo. No trekking é o progresso ao longo da rota de escalada.

Ainda temos o Acampamento Base, Base Avançada, Mochila de Ataque, entre outros.

Muitas vezes, nós mulheres, tentamos nos encaixar nos padrões impostos de que a montanha e trekking é coisa de homem e nos colocamos em caixinhas de que não podemos ser femininas, não podemos demonstrar medos ou fragilidade. Características inerentes ao ser humano, independente do gênero.

E sim! Podemos ser nós mesmas, com nossas preferências: ogras ou princesas! Somos nós e a montanha.

Para mim os benefícios das trilhas com mulheres não se restringem apenas ao indivíduo. Elas têm o poder de inspirar e transformar comunidades inteiras. Ao verem mulheres ocupando espaços antes considerados exclusivos para homens, outras pessoas são encorajadas a redefinir seus próprios limites e a questionar os padrões estabelecidos pela sociedade.

Neste sentido, a Mochila de Batom não é apenas um projeto, mas um movimento. Um movimento que desafia estereótipos, promove a inclusão e reafirma o direito das mulheres de ocuparem qualquer espaço que desejarem. É um lembrete de que a natureza não tem gênero, e que a verdadeira aventura começa quando abrimos nossos corações e mentes para o mundo ao nosso redor.

Mulheres trilhando

Portanto, convido todas as mulheres a se juntarem às trilhas, a explorarem novos horizontes e a descobrirem o poder que reside dentro de cada uma de nós. Pois, juntas, somos mais fortes, mais corajosas e mais capazes do que jamais poderíamos imaginar.

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Laila Blanch

Pedagoga, montanhista, Guia de Turismo Nacional e América do Sul pela CADASTUR, e caminhante, com diversos cursos de primeiros socorros, gerenciamento de riscos, sobrevivência na selva, localização, escalada e montanhismo, técnicas de mínimo impacto, carrega na bagagem diversas viagens e muitas histórias. Atuante na organização de roteiros e desenvolvimento da logística, amante dos esportes de aventura, já levou grupos à diversos destinos e acredita que subir uma montanha nunca é fácil, mas que a vista lá de cima sempre faz valer à pena. Laila é Guia na Agência Mantra Adventure, agência que tem o Monte Roraima como um dos seus destinos mais procurados.

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